Nem é preciso estar diante do forno para saber qual a sobremesa do jantar. Da massa da torta se desprendem moléculas de odor que se espalham pelo ar, penetram nas narinas e atingem um grupo especial de células na porção mais interna do nariz, próximo à base do crânio, disparando mensagens químicas que permitem ao cérebro decifrar o sabor da torta: maçã, com um toque de canela. Sem olfato não há prazer em comer: o repertório da língua se limita a salgado, doce, amargo, azedo e umami – o gosto do monoglutamato de sódio, o aji-no-moto.
A capacidade de perceber aromas é o que dá sentido aos temperos e ervas aromáticas e que permite distinguir entre um suco de laranja e um de abacaxi. Nos últimos anos começou-se a conhecer com mais detalhes como o sistema olfativo decifra os odores e permite, por exemplo, que se distinga, apenas pelo aroma, uma rosa de um jasmim ou um copo de leite bom de outro estragado. Parte dessas descobertas se deve ao trabalho da bioquímica Bettina Malnic, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
Nos últimos anos Bettina decifrou o que se pode chamar de código dos cheiros, ou seja, como as diferentes moléculas de odor interagem com os neurônios e disparam as informações que serão interpretadas pelo cérebro, permitindo aos seres humanos distinguir um repertório com milhares de odores. Ela descobriu que cada molécula de odor se encaixa em mais de um tipo de proteína na superfície dos neurônios do fundo do nariz. É como se cada molécula de odor fosse uma minúscula estrela em que nem todas as pontas são iguais – e cada ponta diferente tem afinidade com um receptor.
Cada receptor, por sua vez, pode receber estrelas com composições distintas, desde que ao menos uma das pontas tenha as características necessárias para se encaixar nele. Essa constatação levou a pesquisadora a concluir que o sistema nervoso reconhece cada molécula pelo conjunto de receptores específicos em que ela se encaixa, e não por um único deles. O código por combinações aumenta em muito o repertório do faro humano.
Se cada molécula se conectasse a um receptor apenas, só seríamos capazes de identificar cerca de 400 odores – o número aproximado de tipos de receptores distintos que existem no nariz humano. Com isso, ela abriu as portas para desvendar o código que rege a percepção dos cheiros e mostrou o que está por trás da rica percepção olfativa humana. Bettina começou a trabalhar nessa linha de pesquisa ainda nascente quase por acaso, quando em 1996 foi fazer um pós-doutorado no Centro Médico de Harvard, nos Estados Unidos.
O plano inicial era dedicar-se a outro tema, mas se encantou com o trabalho da neurocientista Linda Buck, que cinco anos antes identificara os genes dos receptores olfativos e estimara que existiriam pouco mais de mil tipos diferentes desses receptores nos narizes de mamíferos. A importância da descoberta, feita enquanto Linda trabalhava no laboratório de Richard Axel na Universidade Columbia, em Nova York, foi oficialmente reconhecida em 2004 quando a dupla norte-americana recebeu o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia. Por sua contribuição ao que se sabe sobre como animais identificam odores, Bettina foi convidada por Linda a participar da cerimônia de entrega do prêmio.
Orfanato molecular
Com 400 tipos diferentes, os receptores olfativos constituem a maior família de proteínas do organismo humano. Mesmo assim, é pequena se comparada a mamíferos que dependem do olfato para sobreviver: esses 400 correspondem a um terço do acervo de camundongos e metade do que define o celebrado faro canino. Até o início do trabalho de Bettina nos Estados Unidos esses receptores eram ainda órfãos – o termo usado por especialistas para indicar que eles não têm parceiros conhecidos.
Ao longo de quase quatro anos, ela identificou os odores que se encaixam em 14 desses receptores. Além de reduzir o número de órfãos e descobrir que o cérebro reconhece combinações e não receptores específicos, Bettina confirmou que cada neurônio olfativo só produz receptores de um mesmo tipo. Milhares deles.
O processo para chegar a essas descobertas era trabalhoso e lento. Em laboratório, ela expunha neurônios olfativos de camundongos a uma molécula de cheiro específica por vez. Em seguida contou com ajuda de um grupo de japoneses especialistas em detectar, com um corante cor-de-rosa, quais células eram ativadas pela molécula. No Japão, eles pinçavam cada um dos neurônios ativados e mandavam de volta aos Estados Unidos para que Bettina pudesse procurar o trecho de DNA com a receita para o receptor, que era assim identificado.
Bettina é ainda a única especialista brasileira em funcionamento molecular de neurônios olfativos, além dos pesquisadores que ela mesma formou desde 2000, quando criou o Laboratório de Neurociência Molecular no IQ-USP. Mais recentemente ela desenvolveu um método mais eficiente para mapear a percepção dos cheiros com base numa proteína que identificou em 2005, com ajuda de Luiz Eduardo von Dannecker e Adriana Mercadante. É a Ric-8B, que praticamente só existe em neurônios olfativos – sempre associada aos receptores descobertos por Linda Buck. Depois de três anos investigando o funcionamento dessa proteína, o grupo da USP agora tem uma ideia melhor de como ela funciona.
Os resultados mais recentes, publicados em julho de 2008 na Molecular and Cellular Neuroscience e parte da tese de doutorado de Daniel Kerr, mostram que a Ric-8B interage com diversas subunidades de outra proteína – a G olfativa (Golf) – até então considerada a principal responsável por ativar a cascata bioquímica que ativa os neurônios do olfato. “A Ric-8B amplifica a ação da Golf, tornando perceptível a ativação dos neurônios”, explica Bettina.
Além de essencial para aumentar a sensibilidade a aromas sutis, essa amplificação também permite aos pesquisadores detectar atividade nos receptores olfativos no laboratório. Para melhorar a eficiência com que associa receptores e moléculas, ela está desenvolvendo um método engenhoso que apresentou em agosto passado no Congresso Brasileiro de Farmacologia e Terapêutica Experimental, em Águas de Lindoia, e será publicado em breve na revista Annals of the New York Academy of Sciences. Ela pretende distribuir células entre os 96 poços de uma bandeja plástica semelhante a uma forma de gelo em miniatura, onde poderá de uma só vez apresentar 96 tipos de moléculas de odor a células com um mesmo receptor ou testar a reação de receptores diferentes a um mesmo odor.
Os pesquisadores adicionarão à receita uma proteína que produz uma substância fluorescente quando as células são ativadas. Bastará então pôr a placa num leitor de fluorescência para saber em que poços houve ativação. Esse método deve tornar mais rápido o trabalho antes muito lento que dificilmente poderia ser aplicado em ampla escala.
Seria um experimento simples se fosse só isso. Como não é possível usar os próprios neurônios olfativos, nos quais não se sabe de antemão quais receptores estão presentes, Bettina teve de desenvolver uma técnica para fabricar as células experimentais: cultivar células renais humanas nas quais insere as instruções genéticas para produzir um determinado receptor olfativo. Ainda que já se tenha o conhecimento para manter e manipular essas células em laboratório, num primeiro momento foi difícil fazer com que funcionassem como neurônios.
“O receptor ficava dentro da célula e não ia para a membrana, onde precisa estar para ter contato com os odores no ar”, explica a bioquímica.
Quem resolveu o problema foi o japonês Hiroaki Matsunami, contemporâneo de Bettina no laboratório de Linda Buck e hoje radicado na Universidade Duke, nos Estados Unidos. Assim como a brasileira, ele apresentou resultados recentes de seu trabalho em julho na cidade norte-americana de São Francisco, durante o Simpósio Internacional de Olfação e Paladar (cujo maior patrocinador é a Ajinomoto). Independentemente de Bettina, ele descobriu outra proteína essencial na percepção dos odores.
É a proteína transportadora de receptor (RTP), que ajuda a conduzir o receptor da região em que é produzido no interior do neurônio para a superfície da célula. Em artigo publicado em agosto na revista Nature Protocols, Matsunami mostrou que basta implantá-la em células junto com o gene que codifica um receptor para que ele migre até a superfície da célula.
Bettina inseriu a RTP nas células renais. Mas, sem acrescentar a Ric-8B, que amplifica a ativação, não conseguia detectar a reação da célula experimental a moléculas de cheiro. Com o sistema completo, ela acredita que no próximo ano ajudará a tirar da orfandade parte dos receptores olfativos.
“Temos a sequência genética de todos os receptores no banco de dados do Projeto Genoma Humano”, conta a pesquisadora, que pretende iniciar essa nova fase de experimentos avaliando os receptores humanos que não existem em camundongos ou cães – cerca de 20 – para ver quais substâncias eles reconhecem.
Agora que já se sabe como a Ric-8B funciona em células in vitro, um dos próximos passos é investigar a sua função em camundongos vivos. Para isso, Bettina contratou os serviços do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que deverá produzir camundongos com alteração no gene responsável por produzir a Ric-8B e verificar se, sem a proteína amplificadora, os animais mantêm a sensibilidade olfativa intacta.
Faro em evolução
Identificar as moléculas de odor que se encaixam em cada receptor e entender como funcionam as vias olfativas pode ajudar a esclarecer um mistério que intriga os pesquisadores da área: como a capacidade de detectar aromas se alterou ao longo da evolução das espécies. Um artigo de revisão encabeçado por Masatoshi Nei, renomado especialista em teoria evolutiva da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e publicado em 2008 na Nature Reviews Genetics, analisa a influência do acaso e da necessidade na evolução dos receptores de olfato e paladar.
Nei mostra que seres humanos e chimpanzés têm repertórios olfativos de tamanho semelhante, que encolheram ao longo da evolução: ambas as espécies têm cerca de 800 genes para produzir receptores olfativos, mas menos de metade deles é funcional. A outra metade perdeu a função original – são os chamados pseudogenes. Comparados ao homem, camundongos têm três vezes mais genes ativos, por volta de 1.200, além de cerca de 400 que deixaram de funcionar ao longo da evolução.
Os pesquisadores que estudam a evolução do olfato acreditam que as espécies que dependem menos do faro ao longo do tempo acumularam mutações e perderam a função de certos genes. É o caso de homens e chimpanzés, que contam, para enfrentar os desafios cotidianos, com uma visão nítida, em cores e que permite enxergar em profundidade.
A bióloga norte-americana Barbara Trask, do Centro Fred Hutchinson de Pesquisa sobre o Câncer, em Seattle, encontrou pistas para explicar como surgem variações na sensibilidade aos odores. Seu grupo varreu o genoma humano em busca de alterações no conjunto de genes relacionados aos receptores olfativos. Encontrou grande variação em número de cópias, que surge quando partes do material genético são duplicadas e permanecem no genoma.
O gene para um determinado receptor olfativo pode ser copiado inúmeras vezes e cada cópia sofrer modificações. O processo pode permitir que se criem novos receptores ou, ao contrário, causar tantas mudanças que o gene se torne inviável. Em artigo publicado em agosto no American Journal of Human Genetics, o grupo de Barbara conta que encontrou um número de cópias variável em 16 dos genes funcionais para receptores olfativos. Em casos extremos, as mutações em genes de receptores olfativos podem tornar pessoas insensíveis a certos odores – uma condição conhecida como anosmia.
Mas quando causa mudanças menos drásticas essa variação gera diferenças em como as pessoas percebem cheiros. Desse modo os estudos genéticos talvez consigam revelar se duas pessoas que aspiram o aroma de uma mesma xícara de café ou comem um mesmo pedaço de bolo têm sensações idênticas. Como diz Bettina no livro O cheiro das coisas, publicado em 2008 pela editora Vieira & Lent, duas pessoas podem ser diferentes na maneira como cheiram o mundo.
Do DNA ao cérebro
A bioquímica da USP também está interessada em mistérios genômicos. Ela tenta entender o que regula a atividade dos genes que produzem os receptores de cheiros. Todos os neurônios olfativos têm o mesmo conjunto de genes dentro de seus núcleos, mas cada um deles só produz um tipo de receptor – em seres humanos, uma escolha de um entre 400 opções.
Como cada célula escolhe qual receptor apresentar ao nariz é ainda um mistério, mas em artigo publicado em 2006 na Genome Research Bettina indica onde começar a procurar a resposta. Com os doutorandos Jussara Michaloski e Pedro Galante, ela analisou 198 genes de receptores olfativos de camundongos e mostrou que todos contêm trechos de DNA semelhantes. Para a pesquisadora, as características e a localização desses segmentos indicam que eles funcionam como alvos para as moléculas responsáveis por ligar ou desligar cada gene. Assim como interruptores para acender luzes devem ter características semelhantes para que um visitante reconheça sua função, os interruptores genéticos também precisam ter elementos em comum.
Há muito mais do que genes e receptores para se chegar a um mapa completo dos cheiros no cérebro. O trabalho de Linda Buck e Richard Axel mostrou que as projeções de neurônios olfativos com receptores iguais se reúnem em nervos antes de chegar ao bulbo olfativo, uma estrutura alongada na parte anterior do cérebro. O bulbo humano, portanto, se divide em cerca de 400 regiões – os glomérulos –, cada uma delas ativada por um único tipo de receptor de odor.
O pôster produzido pela Fundação Nobel em 2004 traz a ilustração de uma cabeça em que se vê o sistema nervoso olfativo, mostrando como as inúmeras projeções que formam um carpete no nariz se unem em nervos antes de chegar ao bulbo olfativo. Mas a imagem não mostra o que acontece depois do bulbo, como se o trajeto acabasse ali.
“Para descobrir como a informação chega ao cérebro seria necessário acompanhar uma substância que passe de um neurônio para outro, mas não há ainda um método bom para fazer isso”, conta Bettina. A ganhadora do Prêmio Nobel, agora radicada no Centro Fred Hutchinson de Pesquisa sobre o Câncer, está justamente trabalhando em desenvolver essa técnica. O que se sabe é que os neurônios olfativos acabam ativando regiões diferentes do cérebro como o córtex olfativo, responsável por identificar os odores, o hipotálamo, que influencia comportamentos como apetite e impulso sexual, a amígdala, envolvida em emoções, e o hipocampo, importante para a formação de memórias olfativas. É essa anatomia complexa que faz com que um perfume desperte lembranças da infância, que o aroma de um bolo saindo do forno atice o apetite e que mulheres que vivem juntas passem a apresentar ciclos menstruais sincronizados sem que se deem conta dos cheiros hormonais que povoam o ar.
O código dos aromas
As moléculas de odor são como estrelas de pontas coloridas. Cada extremidade se conecta apenas a um receptor olfativo específico — amarelo com amarelo, vermelho com vermelho — no fundo do nariz. Estrelas multicoloridas podem, assim, se encaixar em diversos receptores, e em cada tipo de receptor podem aportar estrelas distintas, desde que pelo menos uma das pontas seja da cor adequada.
O Projeto
Receptores acoplados à proteína G e sensação química (07/50743-9); Modalidade: Projeto Temático; Coordenadora: Bettina Malnic – IQ-USP; Investimento: R$ 367.190,09,
Artigos científicos
KERR, D.S. et al. Ric-8B interacts with Gαolf and Gγ13 and co-localizes with Gαolf, Gβ1 and Gγ13 in the cilia of olfactory sensory neurons. Molecular and Cellular Neuroscience. v. 38, n. 3, p. 341-348. jul. 2008.
VON DANNECKER, L.E.C.et al. Ric-8B promotes functional expression of odorant receptors. PNAS. v. 103, n. 24, p. 9.310-9.314. jun. 2006.
MALNIC, B. Searching for the ligands of odorant receptors. Molecular Neurobiology. v. 35, n. 2, p. 175-181. abr. 2007.
MALNIC, B. et al. Combinatorial receptor codes for odors. Cell. v. 96, n. 5, p. 713-723. mar. 1999.
Redação Vida & tal
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp.