Como uma imersão no semiárido brasileiro, em ambiente hostil e rústico, com clima quente e seco, pode contribuir para o desenvolvimento acadêmico de profissionais ultra especializados em uma área altamente tecnológica? Em busca dessas respostas, a médica Vânia Melhado embarcou no dia 10 de dezembro para o sertão do Rio Grande do Norte para conhecer o Habitat Marte – única estação no Hemisfério Sul que simula as condições encontradas no planeta vermelho.
Doutora em nefrologia, com título especialista número 1 na área de medicina aeroespacial e com trabalhos para os governos dos Estados Unidos, Canadá e União Europeia, Vania é coordenadora da recém-criada residência médica aeroespacial do Instituto Prevent Senior. Primeiro no Brasil aprovado pelo MEC, o curso terá inscrições até 20 de janeiro de 2023 e provas aplicadas no dia 28 do mesmo mês.
A ideia de “ir” a Marte surgiu durante o processo de montagem do currículo da residência aeroespacial, quando Vania tomou conhecimento do projeto desenvolvido pelo professor Julio Rezende na cidade potiguar de Caiçara do Rio do Vento. O simulacro de estação está em uma área de 360m2 a cerca de 100 km da capital do Estado, Natal.
Rezende, um psicólogo e economista com mestrado, doutorado e PhD em sustentabilidade, começou a idealizar o projeto ainda em 2008, ao estudar o tema em suas pós-graduações. A primeira missão ocorreu no fim de 2017. A ideia encantou Vania que, no início de dezembro, embarcou para o Nordeste para testá-la.
“Eu nunca tinha vivido a sustentabilidade na prática, eu fiquei encantada”, resume Vania, em relato logo após testar os limites extremos propostos pela estação potiguar ao participar da Missão Gaia, 134ª expedição no Habitat Marte desde a sua criação.
Vania explica: “Fiz vários cursos de extremo, sempre num ambiente com muita tecnologia. Nos Estados Unidos, por exemplo, eles têm muita tecnologia. Este, na prática, é diferente. Porque você lida com o inesperado a toda hora, como no caso de ser atacado por um enxame de vespas. A resposta (aos protocolos de treinamento) é imediata nesse tipo de ambiente”.
O caso a que a médica se refere foi quando, ao passar por uma fenda, o grupo se deparou com um enxame de vespas e, ao iniciar a rápida retirada de todos para evitar o risco de tomar picadas, o kit de primeiros socorros foi abandonado. Imediatamente após o incidente, esse protocolo de fuga com checagem de equipamentos foi reforçado.
Protocolos são essenciais na medicina aeroespacial e na vida dos futuros astronautas que, um dia, irão ao verdadeiro planeta vermelho. Por isso, diz a especialista da Prevent, a base propõe um experimento social e científico de exposição a situação extrema, com dezenas de protocolos e rotinas análogas às atividades desenvolvidas em uma estação espacial, que vão desde o uso de trajes espaciais simulados até o cultivo de alimento em sistemas fechados (estufas).
Entre as tarefas desenvolvidas ao longo do dia, está uma caminhada nos arredores de um vulcão extinto no Pico do Cabugi. O solo vulcânico é muito rico para pesquisas e, por isso, as atividades durante essa excursão contemplam coletas de amostras do terreno, além de material biológico.
Os participantes das missões também dedicam atenção à infraestrutura do local em pontos fundamentais para o desenvolvimento do programa, como avaliação de sistemas de comunicação e manutenção de equipamentos, como dos sistemas de coleta de água de chuva.
O projeto estimula, ainda, iniciativas auto sustentáveis, com foco na gestão hídrica, reuso de água e produção de energia renovável. Todas essas ações estão em concordância com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pelas Organizações das Nações Unidas (ONU). Algumas situações adaptam o meio para simulações importantes em ambiente espacial. Por exemplo, foi construída uma caverna especificamente para servir de abrigo de radiação, situação fundamental em futuras expedições a Marte ou até mesmo na lua.
Como não poderia ser diferente, uma preocupação primordial em missões no extremo é a garantia de oferta de alimentos. No habitat análogo, a produção ocorre em estufas, que, devido às características da região, precisam reduzir a temperatura ambiente para garantir que os vegetais sobrevivam.
“É incrível o que o professor Julio já faz com uma estrutura ainda incipiente, que está em constante melhoria, mas que ainda precisa e irá se desenvolver muito, por exemplo, aumentando a escala de produção de alimentos por meio da construção de estufas, pois o clima é muito quente”.
Um desafio primordial quando se programa uma missão aeroespacial é o desenvolvimento de atividades com a microgravidade. O curso do Instituto Prevent Senior já prevê experiências análogas à falta de gravidade com o uso da esteira antigravitacional instalada na unidade Grécia, além da simulação realística com óculos 3D. No entanto, os exercícios em piscina, que reduzem 80% da força gravitacional sobre os corpos, são muito semelhantes ao ambiente encontrado no espaço.
Dessa forma, experiências simples, como o abrir ou fechar de portas submersas ou pegar objetos com pinças no fundo de um tanque ou piscina, simulam de maneira muito próxima o manejo de objetos no espaço. Esse protocolo está presente na estação análoga montada no sertão potiguar.
O Habitat Marte está em constante avaliação de melhorias de processos. Os principais protocolos hoje estabelecidos são focam, principalmente, no fator humano, ou seja, no desenvolvimento de atividades em grupos, de maneira hierarquizada. Após dois dias de experiência no semiárido potiguar, a médica confirmou a expectativa criada ainda antes de embarcar para o Nordeste: vai ser muito enriquecedor, para os residentes, passar por essa experiência.
“O residente vai se beneficiar tendo uma vivência no ambiente hostil porque ele vai entender exatamente do que se trata, com respeito à hierarquia estabelecida para o grupo. E o residente não vai fazer essa imersão no início da residência, então ele chega nesse lugar já enxergando o que ele tem de fazer para tomar essas contramedidas”, comenta a coordenadora do curso, que enxerga a imersão como complemento à disciplina de Ambientes Extremos/Hostis.
A possibilidade de intercâmbio dos residentes é o que comumente se chama de situação “ganha-ganha”: diante de todos os protocolos e experiências análogas, é clara a importância dessa vivência para os alunos. Mas essa troca com os residentes do Instituto Prevent Senior também será muito benéfica para o Habitat Marte. Além de avanços de infraestrutura, a atuação de profissionais ultra especializados vai contribuir para a atualização e melhoria das atividades desenvolvidas no local.
“O benefício que eles terão conosco é imenso. Porque são pessoas capacitadas, são os primeiros residentes aeroespaciais desse país. E vai ajudar muito no desenvolvimento de protocolos. Veja, em dois dias, a gente já ajudou a mudar vários protocolos já estabelecidos no Habitat Marte, que são coisas simples”.
A parceria tem potencial para beneficiar, também, a cidade de Caiçara do Rio do Vento, que é carente de recursos. O município tem cerca de 3.750 habitantes, de acordo com estimativas do IBGE (2021).
“Um dos objetivos do habitat é trazer ensino básico, então as crianças das escolas dessa comunidade vão pro habitat entender o que é. Tanto que já teve um concurso de foguete feito com garrafas de refrigerante aberta. As crianças foram pra lá, desenvolveram os projetos, a agência espacial brasileira foi lá abrir o evento. Então, você mostra pra elas um outro mundo”, complementa a coordenadora Vânia Melhado.
Para saber conhecer mais sobre o Habitat Marte, acesse o site do projeto ou visite o Instagram @habitatmarte.
Redação Vida & Tal