Tem sido cada vez mais frequente, e alarmante, o número de casos envolvendo a violência contra a mulher nos últimos anos. Segundo dados divulgados no 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, somente no primeiro semestre de 2020, ao menos 648 mulheres foram assassinadas no Brasil por motivação relacionada ao gênero. Para ajudar a entender um pouco sobre esse crescente fenômeno do feminicídio no país, o Vida & Tal conversou com exclusividade com a especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero, Mirian Beccheri Cortez.
Doutora em psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Mirian atuou como psicóloga no Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, do Ministério Público (ES) e como gerente na Gerência de Proteção à Mulher da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo (GPM/Sesp-ES). Possui experiência prática e acadêmica em temas relacionados a violências contra mulheres, gênero, relações de poder, relações abusivas, masculinidades e paternidade e políticas públicas de proteção e de enfrentamento à violência. Atualmente atua como pesquisadora, consultora e palestrante sobre esses temas e áreas afins e como psicóloga judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP).
“Discursos sobre humanização, respeito à diversidade e dignidade precisam sair do papel, de protocolos e projetos e do discurso midiático e se tornarem práticas cotidianas em nossos espaços (familiares, sociais ou institucionais) e em todo tipo de relação estabelecida entre dois seres humanos”.
V&T- Podemos traçar um perfil psicológico do homem agressor, além do padrão de comportamento sustentado pela cultura patriarcal?
MB – Há estudos com homens autores de violência que identificam alguns aspectos que se repetem com mais frequência como baixa autoestima, uso abusivo de álcool, histórico familiar violento e crenças e atitudes baseadas em característica de gênero tradicionais. O respaldo de uma cultura patriarcal, que exalta o masculino controlador, agressivo e “não leva desaforo nem dentro de casa” é, com certeza um ponto importante para que agressões sejam naturalizadas, cometidas e minimizadas, quando não negadas.
Para quem quer se ater a um perfil é um prato cheio… de riscos! É importante destacar que todos nós conhecemos homens que possuem ao menos duas dessas características e nem por isso agridem ou agredirão suas parceiras. É possível que conheçamos homens que não possuem boa parte dessas caraterísticas e são abusivos de alguma forma e nem sabemos.
Os autores de violência são, em geral, homens comuns, que circulam em nossa comunidade, são ou não bons profissionais, são ou não corretos ou mesmo amigáveis na relação com colegas de trabalho ou em interações sociais menores, são ou não bons pais.
“Importante ressaltar que a violência contra a mulher pode se manifestar de modos muito diversos e que podem nos passar despercebidas”.
O cara brincalhão da empresa pode não “encostar um dedo” na esposa, mas faz comentários discriminatórios há anos, que a reduzem em frente à família, amigos ou quando estão apenas os dois juntos, e ela hoje evita sair de casa para não passar constrangimentos e desistiu do emprego após ceder à ideia do marido de que aquele tipo de serviço não era pra ela; o motorista que sempre para na faixa para o pedestre passar e acena sorridente, pode entender que sexo é uma obrigação da esposa e insistir em relações sexuais em momentos ou de maneiras que não a satisfaçam, a constranjam ou machuque.
V&T- Dentro desse raciocínio seria correto afirmar que o machismo, antes de ser tornar um problema de segurança pública é um problema de saúde mental?
MB – Acredito que é, antes de tudo, um problema de falta de educação e de cultura que valorizem a diversidade humana, as práticas solidárias e o respeito ao próximo (em qualquer tipo de relação).
“Em uma cultura competitiva e machista, o valor e a realização pessoais ainda são associados a uma hierarquia de práticas relacionadas ao masculino ou ao feminino…e vem daí, a meu entender, o impacto na saúde mental”.
Há cobranças (subjetivas e sociais) sobre o homem quanto a atingir, ou estar o mais próximo possível, de um ideal de masculinidade valorizado socialmente. Este ideal é pautado ainda em nosso tradicionalismo patriarcal, o qual qualifica como “homem de verdade” o homem independente, autossuficiente, provedor, pai (não necessariamente cuidador), sexualmente ativo, heterossexual e chefe, se não fora de casa, ao menos dentro dela.
Alguns desses preceitos levam o homem para longe da zona de autocuidado e do cuidado com o outro, afastando-o de comportamentos que poderiam contribuir para sua saúde física e também mental, como socializar dificuldades e emoções, falar sobre frustrações e dificuldades, pedir ajuda, lidar com a dor ou com tristezas de modo aberto e com suporte adequado. Levar um homem para tratar uma doença física já é muito difícil, cogitar algum tipo de cuidado psicológico, sem que venha uma resposta usando a palavra “frescura”, um desafio.
Nosso modo de vida atual, com cobranças, pressões, somados ao contexto nefasto da pandemia Covid-19 que ameaça tirar ou já tirou do homem seu papel de provedor e parte da cadeia produtiva são um estopim muito curto para que explosões na forma de violências domésticas ocorram, como vemos que tem ocorrido.
V&T- Como identificar um contexto potencial de feminicídio – como e onde buscar ajuda?
MB – A violência no relacionamento íntimo contra a mulher e uma de suas manifestações mais agudas, o feminicídio, raramente ocorre de uma hora para a outra. Há estudos que indicam contextos mais comuns em que ocorrem feminicídios, um deles é o momento em que a mulher que vivencia um relacionamento violento sinaliza o desejo de encerrar o relacionamento ou, de fato, sai da relação. A perda ou ameaça de perda do controle que o homem sente ter pela parceira é, para muitos autores de violência, algo insuportável e inaceitável, além de humilhante para ele como homem.
“Sentir que perdeu ou está prestes a perder “a posse” da mulher com quem se relaciona é um dos estopins para o escalonamento acelerado da violência (agressões físicas e psicológicas mais intensas e/ou frequentes) e pode implicar no feminicídio”.
Quanto ao como e onde buscar ajuda, o desafio está na qualidade da rede de apoio social e municipal a que a mulher tem acesso e na disponibilidade e condições e emocionais que ela possui em expor sua situação a cada momento. A verdade é que às vezes a mulher ainda não consegue compreender o que está acontecendo, não consegue avaliar os riscos a que está exposta e quais são suas saídas seguras, ou menos inseguras, em termos de segurança física, mas também econômica e estrutural. Muitas vezes é após o apoio de uma amiga, de um familiar, de um grupo comunitário ou de um serviço de acolhimento e orientação que a mulher vai conseguir fazer os movimentos iniciais para buscar uma vida livre de violência.
Buscar apoio, orientações e suporte emocional e sobre direitos é essencial. Alguns serviços municipais existentes para isso são os Creas e, em alguns municípios, os Centros especializados de atendimento a mulher, os quais compõem as políticas públicas de proteção à mulher e de enfrentamento à violência. Em alguns municípios há também centros ou setores da saúde especializados no acolhimento e acompanhamento psicológico de mulheres em situação de violência.
“É imprescindível que as mulheres saibam quais são os serviços disponíveis em sua cidade, onde ficam e acessar a qualquer um quando precisar, pois todos devem ser “porta aberta” – acolher, orientar e inseri no fluxo de atendimento. Para orientações legais, a defensoria pública seria a referência inicial”.
Além disso, em termos práticos, eu diria que a denúncia formal na delegacia é meio que pode inibir o aumento da violência em curto prazo, sendo o Boletim de Ocorrência (BO) um meio documental de garantir um registro histórico, muitas vezes cobrado posteriormente nos espaços jurídicos ou mesmo para entrada em alguns serviços (ainda que eu não concorde com este último ponto, para mim, serviços voltados à mulher em situação de violência não devem exigir BO, devem orientar quanto às opções e ser suporte para as escolhas em cada momento).
Ainda que não seja previsto mais em lei, há delegacias que só emitem Medida Protetiva de Urgência (MPU) com o registro do BO, medida que visa garantir a segurança da mulher por meio de restrições de contato entre ela e o denunciado ou mesmo com a inserção dela em uma Casa Abrigo, caso seja identificado risco eminente de morte.
V&T- Acredita que é possível haver uma “reviravolta” da masculinidade tóxica para a masculinidade saudável? Qual seria o caminho?
MB- Acredito que todos os caminhos possíveis para essa ressignificação passam pelo que eu chamo de empoderamento emocional do homem. É essencial que o homem se sinta mais confortável e menos ameaçado por sentimentos como fragilidade, vulnerabilidade e medo, sentimentos esses que, em geral aprendem a esconder e a expressar por meio de raiva e agressividade. A paternidade pode ser uma porta de entrada para que homens adultos acessem o exercício da afetividade e do cuidado de modo positivo, sem que a afetividade seja sentida como uma ameaça à sua masculinidade.
“Acredito e acho necessário esse movimento de reconceituação/ressignificação da masculinidade. Deixar a toxicidade que nossa cultura patriarcal impõe ao homem e buscar referências de masculinidade em relações positivas, saudáveis e com padrões alcançáveis de conquista e satisfação é aspecto essencial para a saúde de nossa sociedade, saúde e maior segurança de homens e mulheres”.
Outra opção aos adultos são os grupos reflexivos para homens, que abrem espaço seguro para que troquem experiências e compartilhem questões que o afetam ou afligem e, fora dali, não se sentem seguros para expressar. Quanto a jovens e meninos, acredito que seja um passo importante garantir a eles o acesso a modelos positivos, afetivos e não enrijecidos de masculino e feminino, bem como relações afetivas em que o respeito à diversidade seja exercido e expresso.
V&T- A expressão “ninguém nasce racista, aprende pelo exemplo o racismo”, vale também para o machismo? Onde entra o papel da família na formação desse indivíduo?
MB– A família (seja qual for a composição do núcleo familiar de cuidado e afeto) é a base inicial dos modelos de relacionamentos interpessoais, amorosos ou não. Depois dela, outros agentes socializadores vão se tornando mais presentes, como escola, instituições religiosas, grupos de amigos, de atividades de lazer ou trabalho.
“A mídia é também um forte agente socializador, por meio de propagandas, programas, novelas, filmes”.
Porque trago os demais socializadores? Porque assumo que pais e família são produto social e reproduzem nas relações aquilo que aprenderam a fazer e valorizar como correto e positivo. Nesse sentido, uma base familiar machista é terreno muito fértil para a assimilação e manutenção desses valores quando entram em contato com outros contextos socializadores que reforçam tais preceitos. Em outra palavras: se aprendo em casa, vejo na tevê, repetem na escola, meu grupo de amigos concorda (ou não se manifesta)… então faço também porque entendo que está correto.
Por mais conteúdo contrário ao machismo que tenhamos hoje, há ainda muito favorável a ele e que nega a equidade entre os gêneros como uma forma de “reduzir conflitos e produzir uma cultura de paz”.
V&T- Como fica a saúde mental da mulher sobrevivente da violência domestica/ familiar?
MB- A violência pode ser cometida de formas diversas e, por isso é necessário pensar em generalidades e especificidades dos impactos na saúde mental da mulher. Ela possui apoio familiar e/ou social? Está inserida em serviços com profissionais qualificados?
“De um modo geral, seja pela repetição ou pela intensidade da violência, é comum identificarmos transtorno de humor (depressão, ansiedade, transtorno de pânico), alterações significativas no sono e no apetite que impactam concentração, humor, autocontrole e mesmo autoestima”.
O impacto desses efeitos nas relações cotidianas (familiares, sociais e laborais) dependem da realidade de cada mulher. Pode haver impacto negativo nas relações domésticas e familiares (agressividade, passividade, desamparo diante de problemas), no exercício da maternidade (dificuldade no exercício dos cuidados), nas relações de trabalho (absenteísmo, queda de produtividade).
A relação consigo mesmo também pode ser prejudicada, havendo estudos que indicam maior probabilidade de engajamento em comportamentos de risco (uso excessivo de álcool ou outras drogas, comportamentos autolesivos) e redução em comportamentos em que indicam autocuidado (exames preventivos, higiene pessoal, busca por lazer e interação social/comunitária). O apoio familiar e social e o suporte de serviços qualificados são essenciais para que as mulheres reencontrem e restabeleçam seu potencial como ser humano, como mulher e como pessoa de direito.
V&T- Também podemos traçar um perfil de mulheres que são vítimas em potencial ou qualquer mulher está sujeita a isso?
MB- A mulher que sofre violência se torna, muitas vezes, enfraquecida e problemática, esse é um dos impactos perversos da violência de gênero e não quem ela é. O rótulo e o estigma que mulheres em situação de violência recebem da sociedade, dela própria e de pessoas próximas são um dos pesos a serem superados para sair dessa situação e voltar a viver uma vida digna.
“Rotular a mulher é torná-la parte do problema e, com isso culpabilizá-la, quando o problema é a agressão e as violências cometidas contra ela”.
Entendo que da mesma forma que padrões de masculinidade favorecem e estimulam homens a agir de modo agressivo, controlador e abusivo, como forma de “ser homem”, padrões de feminilidade também podem ser tóxicos e colocar a mulher em posições de submissão a abusos “justificados” pela necessidade de “ser uma boa mulher”, “manter-se desejável aos olhos do homem”, “servir ao homem” ou “segurar/consertar o casamento”.
As pressões culturais referentes à mulher, em seu modo mais tradicional, pregam fragilidade, passividade e servidão. Essas mesmas pressões cobram relacionamentos heteronormativos de homens e mulheres, que sejam monogâmicos e, ao menos aos olhos dos outros, harmônicos. A violência dentro de casa muitas vezes é justificada e ‘aceita’ como modo de controle da tradição patriarcal de gênero. Quem não conhece a expressão “colocar a mulher no seu devido lugar”? Que lugar é esse?
V&T- Como lidar com os múltiplos aspectos da violência contra mulher, que vão além da questão criminal?
MB- A criminalização e judicialização dos casos de feminicídio e relativos à Lei Maria da Penha são uma necessidade em uma sociedade que pouco sabe agir autonomamente por respeito. A maior parte de nosso grupo social responde de modo mais imediato a ações coercitivas, e para evitar mortes que vem sendo anunciadas ao longo de relacionamentos abusivos que se prolongam por meses ou anos, precisamos agir rápido e, muitas vezes de modo extremo (inserção da mulher em casa abrigo e detenção provisória do denunciado).
“Há, logicamente um passo muito necessário: que as relações sejam construídas cada vez menos baseada em pressupostos machistas nos quais ao homem cabe o direito de corrigir e à mulher o dever de obedecer”.
Atuo na área há cerca de 20 anos e acredito que hoje problematizamos e criticamos muito mais as violências cometidas contra mulheres e meninas do que antes. A naturalização era comum, a romantização também. O empresário, Doca Street (recentemente falecido), em seu primeiro julgamento, conseguiu pena branda ao desvalorizar e desacreditar a mulher que matou e ainda teve sua ação romantizada pelos advogados com a expressão “matou por amor”. Gostaria de dizer que ninguém mais aceita esse argumento hoje, mas acredito que, de fato, mais pessoas hoje rejeitam argumentos como esse, por serem simplesmente absurdos.
Falamos e agimos em diferentes frentes sobre os problemas relacionados à violência de gênero e sobre os padrões patriarcais relacionadas ao masculino e feminino… mas temos os que se fazem cegos e surdos às reais necessidades de mudanças em nossa cultura e no modo como ela se manifesta nas nossas relações cotidianas, familiares, sociais e de trabalho.
“O impacto de uma cultua patriarcal é notável, e muito, nos números de mortes de mulheres pelos próprios parceiros ou ex-parceiros”.
Se em uma relação amorosa, iniciada com expectativas positivas e afetivas, o final pode ser trágico, em outras relações, o abuso se mostra tão natural como vemos nos recentes casos envolvendo políticos, atores e mesmo profissionais do meio jurídico.
Entendo que o maior desafio hoje é a mudança nas práticas sociais que precisa ocorrer de modo individual e consciente (de dentro para fora) e de modo coletivo (de fora para dentro). Discursos sobre humanização, respeito à diversidade e dignidade precisam sair do papel, de protocolos e projetos e do discurso midiático e se tornarem práticas cotidianas em nossos espaços cotidianos (familiares, sociais ou institucionais) e em todo tipo de relação estabelecida entre dois seres humanos.